Saiba mais sobre as citações religiosas na carta do atirador da escola de Realengo

Boff diz que "maniqueísmo" e "consciência do pecado" são marcas.
Professor Eulálio Figueira diz que texto usa “imaginário coletivo religioso”.

Cruzes de madeira colocada no muro da escola no Rio (Foto: AP)
Morador de Realengo observa cruzes de madeira, recados e flores colocados ao lado de muro da escola onde ocorreu ataque no Rio de Janeiro (Foto: AP)

O primeiro trecho da carta deixada por Wellington Menezes de Oliveira, responsável pelo ataque que deixou 12 crianças mortas no Rio, traz citações de aspectos comuns a diferentes religiões. Especialistas ouvidos pelo G1 alertam que o texto não tem referências diretas a uma crença específica e não pode ser lido como discurso religioso autêntico.

Na carta (veja íntegra ao final desta reportagem), ele cita os conceitos “impureza” e “castidade”, pede para que seu corpo seja “lavado” e envolvido em um “lençol branco” antes de ser sepultado. Pede ainda para que um “fiel seguidor de Deus” ore por ele e peça o perdão de Deus. O trecho termina com a esperança de que Jesus em sua vinda o desperte do “sono da morte para a vida eterna”.
A Federação das Associações Muçulmanas do Brasil divulgou nota na tarde de quinta-feira (7) para esclarecer que ele não participava da comunidade. A intenção foi rebater afirmações de suposta ligação do assassino com o islamismo.
Os especialistas preferem não fazer relações entre o que foi escrito e referências encontradas na Bíblia e em doutrinas religiosas. Entretanto, concordam que a mensagem tem mais ligações com a tradição judaico-cristã e não com o islamismo. “Ele não se liga à religião judaica, muçulmana, nada disso. Ele é da tradição judaico-cristã. Os judeus esperam o Messias. Para os cristãos, o messias é Jesus”, afirma o teólogo Leonardo Boff, lembrando o ponto em que o atirador cita a vinda de Jesus.
Ele justapõe muitos elementos das religiões que estão no mercado. É um brasileiro sincrético. (...) E dentro do cristianismo, há grupos maniqueístas. É uma patologia que atravessa todas as religiões"
Leonardo Boff, teólogo
O teólogo avalia que que há dois eixos religiosos claros no discurso expresso na carta: “maniqueísmo” e “consciência do pecado”. Segundo ele, o maniqueísmo pode ser encontrado em diversas religiões e na mensagem do atirador quando ele se refere a duas categorias: o puro e o impuro. “Ele só quer a pureza absoluta. É claro que ele se filia a essa corrente que é antiquíssima. Santo Agostinho foi durante muito tempo maniqueísta. O maniqueísmo parte de uma experiência verdadeira que é a existência do mal no mundo”, explica Boff.
O teólogo diz ainda que a consciência do pecado foi admitida no texto. “Ele sabe que está fazendo mal a Deus, pede que uma pessoa religiosa interceda. Tem consciência que fez o mal e que, perdoado, pode buscar a vida eterna”, diz.
“Ele justapõe muitos elementos das religiões que estão no mercado. É um brasileiro sincrético. (...) E dentro do cristianismo, há grupos maniqueístas. É uma patologia que atravessa todas as religiões”, complementa.
O professor Eulálio Avelino Pereira Figueira, coordenador do curso de especialização em Ciência da Religião da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), prefere não avaliar pontualmente o texto e alerta para o risco de julgamentos apressados e associações entre o discurso do atirador e o que pregam as religiões.
“Não existe religião que esteja fundada no mal (maldade) gratuito, muito menos na perversidade e na crueldade”, comenta. Para o professor, a mensagem do texto é “resultado de um imaginário coletivo religioso.”

Conceitos
Os especialistas preferem não apontar temas dentro da carta e seus equivalentes nas religiões. Eles temem que a fé seja apontada como culpada pelo ataque. Entretanto, concordam que há fragmentos do "imaginário" religioso no texto. Os temas da impureza e da castidade, utilizados na mensagem, são usados de diversas maneiras por diferentes crenças a partir da leitura do Antigo e do Novo Testamento. Este último, por exemplo, associa a impureza como uma das "obras da carne” em Gálatas capítulo 5, versículo 19. O teólogo Boff ressalta que esse é um dos aspectos do maniqueísmo no texto.

O atirador fala também sobre seu sepultamento, cujos detalhes solicitados na preparação do corpo lembram as orientações de um funeral judaico. É possível lembrar que o evangelho de Mateus capítulo 27, versículo 59 relata que Jesus foi sepultado envolvido em um lençol branco.
Ainda na carta, o atirador fala da esperança de ser despertado por Jesus do “sono da morte”. De acordo com a tradução disponível e em contexto diverso, o salmo 13, versículo 3 traz expressão semelhante. No Novo Testamento, a passagem da ressurreição de Lázaro é outro texto bíblico usado por diversas correntes cristãs. Nela, como está em João capítulo 11, versículo 11, Jesus diz em uma metáfora que vai acordar o amigo que "adormeceu". Na passagem, Lázaro é ressuscitado, assim como relatam os evangelhos que o próprio Jesus ressuscitou.

Por fim, a carta do assassino tem uma citação ao retorno de Jesus (vinda). A expectativa do retorno do Messias para restabelecer o reino do Deus na Terra é um tema importante em diversas correntes religiosas, sobretudo baseadas na leitura do livro do Apocalipse.

Íntegra da carta e transcrição
Reprodução carta atirador (Foto: Reprodução)Reprodução do primeiro trecho da carta (Foto: Reprodução)
“Primeiramente deverão saber que os impuros não poderão me tocar sem luvas, somente os castos ou os que perderam suas castidades após o casamento e não se envolveram em adultério poderão me tocar sem usar luvas, ou seja, nenhum fornicador ou adúltero poderá ter um contato direto comigo, nem nada que seja impuro poderá tocar em meu sangue, nenhum impuro pode ter contato direto com um virgem sem sua permissão, os que cuidarem de meu sepultamento deverão retirar toda a minha vestimenta, me banhar, me secar e me envolver totalmente despido em um lençol branco que está neste prédio, em uma bolsa que deixei na primeira sala do primeiro andar, após me envolverem neste lençol poderão me colocar em meu caixão. Se possível, quero ser sepultado ao lado da sepultura onde minha mãe dorme. Minha mãe se chama Dicéa Menezes de Oliveira e está sepultada no cemitério Murundu. Preciso de visita de um fiel seguidor de Deus em minha sepultura pelo menos uma vez, preciso que ele ore diante de minha sepultura pedindo o perdão de Deus pelo o que eu fiz rogando para que na sua vinda Jesus me desperte do sono da morte para a vida eterna.”

Reprodução carta atirador (Foto: Reprodução)Reprodução do segundo trecho da carta de atirador (Foto: Reprodução)
“Eu deixei uma casa em Sepetiba da qual nenhum familiar precisa, existem instituições pobres, financiadas por pessoas generosas que cuidam de animais abandonados, eu quero que esse espaço onde eu passei meus últimos meses seja doado a uma dessas instituições, pois os animais são seres muito desprezados e precisam muito mais de proteção e carinho do que os seres humanos que possuem a vantagem de poder se comunicar, trabalhar para se alimentarem, por isso, os que se apropriarem de minha casa, eu peço por favor que tenham bom senso e cumpram o meu pedido, por cumprindo o meu pedido, automaticamente estarão cumprindo a vontade dos pais que desejavam passar esse imóvel para meu nome e todos sabem disso, senão cumprirem meu pedido, automaticamente estarão desrespeitando a vontade dos pais, o que prova que vocês não tem nenhuma consideração pelos nossos pais que já dormem, eu acredito que todos vocês tenham alguma consideração pelos nossos pais, provem isso fazendo o que eu pedi.”

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